Vem, vem, vem, ver o circo de verdade



Com um misto de arte e racionalidade, rotina e novidade, profissionalismo e familiaridade, o circo é um belo exemplo para as empresas que queiram prosperar no século 21

Martha Costa, EXAME
O circo moderno nasceu junto com a Revolução Industrial. Em 1742, o cavaleiro inglês Philip Astley, que costumava exibir-se com cavalos em picadeiro redondo, acrescentou ao espetáculo as apresentações de saltimbancos e artistas das ruas, das praças e das estradas da velha Europa. Ele cercou o picadeiro com arquibancadas e passou a cobrar ingresso. Foi isso que deu origem ao que hoje conhecemos como circo.
A empresa idealizada por Astley tinha como objetivo a diversão, o entretenimento - mas constitui um belo exemplo para qualquer organização que pretenda sobreviver num mundo repleto de insegurança e instabilidade. Aliando racionalidade artística e técnica, o circo primou pela criatividade e por uma enorme capacidade de adaptação. Contemporâneo do modelo industrial, trilhou seus próprios caminhos e desenvolveu um modelo distinto. Apesar de fortemente vinculado às origens, sua estrutura organizacional e suas práticas administrativas aproximam-se das características hoje consideradas tendências das organizações do século 21.
O circo chegou aos Estados Unidos no início do século 19 e lá incorporou uma nova tecnologia: a lona que cobriria o espaço de apresentações e que, daí em diante, seria o mais expressivo símbolo do circo ocidental. Carregando consigo apenas seu conhecimento, suas habilidades, seus próprios instrumentos de trabalho, os artistas conseguiram manter unidas suas famílias em torno do trabalho e correr o mundo, com espetáculos fabulosos.
As organizações circenses conciliam características pré e pós-industriais. Sua itinerância e seu caráter plural foram responsáveis por estratégias de adaptação que muito podem contribuir para pensarmos as organizações contemporâneas. Elas resguardaram características corporativas e familiares e mantiveram seus valores e sua identidade, enquanto utilizavam todos os benefícios da contemporaneidade. Mesmo as inovações mais radicais jamais alteraram os alicerces sobre os quais se ergue a instituição circense.
São esses valores que fazem do circo uma organização tão especial: um grupo de pessoas, unidas por um forte ideal e um grande amor ao seu trabalho, ligadas fundamentalmente por laços de familiaridade e pelo conhecimento, lutando dia após dia para manter o seu negócio, sustentar com ele sua família e preservar sua arte.

O circo por trás do pano

O circo tem sua identidade marcada pela forma que o caracterizou e que facilita a montagem e a desmontagem, a cobrança de ingressos, o conforto da visão completa do espetáculo para o público. Essa estrutura reproduz a própria forma da Terra. Circo é círculo. Nele cabem a unidade e a diversidade. Incorporando, absorvendo e transformando costumes, línguas e valores, o circo é reconhecível em qualquer parte do mundo. Essa forma guarda em si todos os elementos que o identificam e o mantêm íntegro.
Sua estrutura arquitetônica é seu grande trunfo. Dos pontos de vista físico e artístico, o circo é composto de partes que podem ser constantemente substituídas e alteradas. Assim, ele é sempre novo, porque não pára de mudar. Esse é o seu estado permanente de ser.
Poder "carregar a casa nas costas" dá ao circense o privilégio de uma liberdade que outras formas de espetáculo não têm. Dificuldades são rapidamente superadas com mudanças. Mudança, entretanto, não é sinônimo de problema: ela é permanente, planejada, calculada, dirigida. A mudança não é oposta à tradição. Para o circo, tradição é um valor. Significa pertencer a um mundo onde um determinado tipo de conhecimento constitui a própria essência da instituição. Esse conhecimento chega às organizações por meio da vivência e da prática daqueles que, por origem sanguínea ou não, constituem seu maior patrimônio: os indivíduos. Admitir pessoas não nascidas entre dinastias tão bem preservadas é parte do processo de inclusão que sempre existiu no circo e que o renova, atualiza e o faz próximo da sociedade que o cerca.
O conhecimento é, certamente, o maior valor existente no circo. Seu peculiar processo de transmissão permanente de saber envolve e compromete a todos. A tradição exige que a formação de um circense seja completa, integral. Isso significa que há um saber que pertence ao indivíduo, e que portanto está no âmbito da sua especialidade, e um outro que pertence ao grupo. Dominar ambos os saberes faz com que o indivíduo de fato possa pertencer àquela cultura, àquela comunidade.
A perícia com a qual realiza seu número torna o artista respeitado, disputado pelo mercado de trabalho, e valoriza o espetáculo. Essa idéia, coerente com as novas visões do trabalho e do emprego no século 21, está presente na vida do circo desde seus primórdios. O artista deve manter-se em constante processo de aprimoramento, pois cada circo é uma vitrine para mostrar seu trabalho e estar sempre entre os melhores.
É este melhor que o circo anuncia. Toda a propaganda se utiliza de adjetivos que qualificam seus artistas e o próprio circo como o maior, o melhor, o único, o inimitável, o excepcional... Esses adjetivos não são simples recursos de retórica. São eficazes elementos para estimular a curiosidade do público, para valorizar e identificar o circo e o trabalho dos artistas. A exposição de qualidades de um circo, das atrações excepcionais que traz em seu elenco, é o que acirra a competição entre as companhias. O termo competição é usado sempre em espanhol: competência. Esse é um indício daquilo que define as regras do jogo entre os concorrentes: qualidade, maestria em saber cativar e conquistar a platéia.
O que a maestria, expressa em tantos adjetivos, revela é o caráter único de cada artista e de cada número. Por isso os melhores entre os melhores são tão respeitados no universo circense. E o que os define como os melhores são muitas vezes detalhes sutis, mas definitivos. Eles são modelo, exemplo, mestres, pois tudo o que fazem está além dos limites.
O circo é reconhecido mundialmente por sua capacidade de enfrentar situações repletas de fatores inesperados e por vezes capazes de esgotar os recursos de uma companhia. Os custos das mudanças, instalações e desmontagens são muito elevados, quando comparados com os custos de pôr em cena qualquer outro espetáculo ao vivo que se utiliza de equipamentos já instalados. Planejar muito bem os roteiros, reduzindo distâncias entre cidades, compensando praças mais difíceis com outras onde o circo possa respirar, é fundamental. (No entanto, o esforço é inútil se o circo não encontra local onde possa parar, como vem acontecendo em todo o Brasil devido a especulação imobiliária, preconceito e falta de políticas locais que entendam o circo como manifestação cultural. Assim, a itinerância fica mortalmente prejudicada.)

O circo em cena

A permanente luta pela sobrevivência em situações tão adversas e o forte sentido de familiaridade criaram uma rede de comunicação permanente entre as empresas, por meio das pessoas. É como se fosse um recurso de segurança: cada circo sabe dos outros circos e se comporta como parte de um todo, uma rede de circos. Essa rede se solidifica em três elos básicos: no compromisso, na confiança e na solidariedade.
O compromisso que se estabelece entre o indivíduo e o circo é fundamentado e fundamenta todos os elementos citados anteriormente. A forma de viver e exercer seu ofício redunda numa enorme cumplicidade entre as pessoas e ultrapassa o compromisso com a empresa e com a família. É um compromisso com o circo, considerado uma atividade e uma arte.
A confiança é originada nas relações familiares, na necessidade de permanecer juntos e no cuidado extremo com o outro: com a vida, com a integridade física, com as relações interpessoais. Cultivada todo o tempo no circo, mantém viva a essência da manifestação artística circense, que repousa sobre a verdade e sobre o risco. Um artista enfrenta o desafio constante aos limites impostos pelo próprio corpo e pelo ambiente (altura, distância, força, equilíbrio). Descuidos ou desafetos não podem interferir na realização do trabalho.
A união e a familiaridade entre as pessoas gera uma grande solidariedade. Todos conhecem bem as dificuldades por que passam e sabem quanto é difícil enfrentá-las sozinho.
Pressionada pelas mudanças no ambiente, a estrutura das organizações circenses vem se alterando gradativamente ao longo do tempo - de um núcleo exclusivamente familiar a uma empresa complexa. A agregação em torno da empresa se dá tanto pelas relações familiares como pelo conhecimento e habilidades dos contratados. Dessa forma, a empresa se organiza e reorganiza quantas vezes for preciso com base em dois pressupostos: o espetáculo que pretende montar e os especialistas disponíveis no mercado.
A competência múltipla do circense, o conhecimento partilhado por todos e o processo permanente de aprendizagem garantem à organização mecanismos de sobrevivência insuperáveis. Essa flexibilidade é possível graças a uma forte adesão ao projeto artístico e a um sentimento de pertencimento à família circense. Todos compactuam das dificuldades e do sucesso da empresa.
Embora a hierarquia no circo seja extremamente respeitada, o decisor muda constantemente, dependendo da situação que se apresente. Investidos da autoridade que o saber lhes confere, artistas e técnicos dividem a responsabilidade de decidir sobre suas áreas específicas e em alguns momentos sobre assuntos cruciais para a organização.
Em vez da prática gerencial mais conservadora, o circo desenvolveu competências gerenciais totalmente voltadas para a adaptação às novas circunstâncias, capazes de realizar as mutações necessárias na estrutura para se adequar a novas situações sem abrir mão de sua identidade. A redundância natural numa situação de descentralização decisória vem sendo considerada uma das grandes vantagens das organizações flexíveis, em que a idéia do todo organizacional está presente em cada parte.
O processo fundamental do circo é a realização do espetáculo. Do sucesso deste depende a sobrevivência do grupo e conseqüentemente a manutenção da empresa. Todos os demais processos advêm da necessidade de manter o espetáculo em cartaz. Cada processo exige um tratamento distinto. Montagem, desmontagem e mudança, processos comuns ao circo itinerante, embora facilitados por novas tecnologias, são constituídos de rotinas bem definidas e sempre cumpridos da mesma forma. Rotinas e previsibilidade evitam riscos. Para isso é preciso muita disciplina, que no circo é sinônimo de segurança. Processos flexíveis, como os de contratação, de negociação salarial ou até de montagem do espetáculo, convivem com processos absolutamente rigorosos e rotineiros.
O espetáculo é também o principal produto da organização circense. É sua razão de existir, o produto que anuncia e vende. É o resultado da união bem-sucedida de valores individuais, que representam a si mesmos. Não há truque, não há dublê. O circo vende verdade envolvida em emoção, suspense, alegria, diversão. É o produto exposto ao consumidor e avaliado na hora pela reação da platéia, que pode ser o aplauso, a indiferença ou a vaia.
Suas peculiaridades e suas estratégias de sobrevivência forjaram a capacidade necessária para enfrentar as mudanças por que passou o mundo. Adaptação foi a palavra-chave para que o circo chegasse aos dias de hoje íntegro, variado e reconhecível. Os bens que um circense carrega consigo são a sua própria história transmitida oralmente de geração a geração, o conhecimento, a solidariedade, o espírito de equipe. Processos rigorosamente determinados e inflexíveis convivem com uma estrutura organizacional flexível e leve. Ambos são responsáveis pela qualidade do empreendimento. Convivem pré e pós-fordismo. Convivem tradição e contemporaneidade.
O que hoje se entende como novo circo nada tem de novo em essência. O novo é um pressuposto do circo. O novo circo é herdeiro legítimo do circo tradicional porque nele se encontram preservados seus valores fundamentais: a tradição que não amarra, o conhecimento como o maior valor, a familiaridade em lugar da família, a itinerância como meio, a maestria como finalidade.
O circo consagrou a máxima "Viver do público e para o público", atentando sempre para o público externo e interno ao mesmo tempo. Para preservar a sua arte, guardou segredos a sete chaves, transferiu conhecimentos a seus herdeiros e tornou-os melhores e mais famosos. Fez escol, foi admirado por todas as camadas sociais e vive nas lembranças de infância de pessoas de todo o mundo. Luta para manter viva a emoção, que une "os de dentro" e "os de fora". Luta pelo cotidiano e pelo grande sucesso. Ensaia exaustivamente, repete exaustivamente, e cria sem parar. Tudo faz buscando uma relação muito próxima com o público, porque nada substitui o aplauso de uma platéia em suspense por um número arriscado, o riso, a alegria. Nada substitui o envolvimento de misturar vida e trabalho, contradizendo paradigmas cristalizados e parciais. Nada substitui o prazer de trabalhar divertindo-se. Nada substitui a satisfação de encerrar um espetáculo tendo feito algo novo, ido além, deixando sua marca, seu nome, tornando-se referência. Nada substitui a emoção e a satisfação de envolver a todos com sua arte, de fazer tudo isso ao vivo, expor-se ao máximo, sem truques, pondo-se à prova diante de todos.
Martha Costa (marthacosta@lycos.com), ex-coordenadora da Escola Nacional de Circo, é professora de administração na Universidade Estacio de Sá, no Rio de Janeiro. Este texto foi extraído de sua dissertação de mestrado na Escola Brasileira de Administração Pública, da FGV

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